fonte: Folha de SP
A interiorização e expansão dos cursos de medicina no país não têm garantido a fixação de médicos nas regiões menos assistidas por esses profissionais. Mesmo com a ampliação do número de formados, alguns estados chegam a perder até 60% dos recém-formados.
A ampliação dos cursos de medicina se intensificou no país a partir de 2013, com a lei do Mais Médicos, sob o argumento de que a abertura de escolas médicas em regiões mais desassistidas faria com que conseguissem reter os profissionais.
Essa política, porém, não garantiu a fixação dos médicos nesses locais e, hoje, entidades médicas temem que uma disputa bilionária entre grupos educacionais possa ampliar a concentração desses profissionais no Sul e Sudeste do país.
A disputa, que chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal) no fim de junho, ocorreu após centenas de faculdades particulares passarem a buscar, e conseguir, liminares que as autorizam a abrir cursos de medicina sem atender aos critérios regionais estabelecidos pela lei do Mais Médicos.
As liminares também passam por cima de uma moratória de 2018, feita no governo Michel Temer (MDB), impedindo novas autorizações de vagas em medicina até abril de 2023. A suspensão tinha como objetivo conter o avanço de cursos sem qualidade no país.
“O que se vê no Brasil é a criação de um verdadeiro negócio no processo de abertura, com exclusivo interesse privado”, diz José Hiran Gallo, presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina).
Um levantamento feito pelo CFM identificou que os estados com menor proporção de médicos têm uma alta migração de recém-formados.
No Acre, por exemplo, de 240 alunos que se formaram em medicina entre 2018 e 2021, 62,9% foram para outros estados fazer seu primeiro registro médico para começar a atuar na profissão.
O Acre é a segunda unidade da Federação com a menor densidade desses profissionais. Enquanto o país tem uma média de 2,74 médicos por mil habitantes, o estado registra 1,41 médico por mil habitantes.
Para entidades médicas, a política de expansão dos cursos não garantiu a fixação dos profissionais por não ter criado as demais condições buscadas pelos médicos.
“O que retém o médico em uma região hoje não é a graduação, é a residência médica. Quem se forma quer ter uma especialização. São poucas as opções de residência nessas regiões, então o profissional vai para os grandes centros, faz a especialização e fica por lá”, diz José Eduardo Dolci, diretor científico da AMB (Associação Médica Brasileira).
A melhora da distribuição médica no país, segundo as entidades, depende da interiorização integral da medicina.
“O médico precisa contar com infraestrutura para cuidar dos pacientes, com uma rede pública que ofereça leitos, exames, procedimentos. O estado também precisa garantir remuneração adequada e estabilidade via concurso público”, diz Gallo.
A busca de uma residência de excelência foi o que motivou o médico Guilherme Menezes, 24, a sair de Aracaju após se formar em medicina na UFS (Universidade Federal de Sergipe).
“Só tentei a residência na USP por ser a que oferece o melhor ensino. Em Sergipe, há residências boas, mas São Paulo ainda é a referência na área de ortopedia. Eu queria me especializar onde houvesse melhores oportunidades”, afirma.
Menezes diz que gostaria de voltar para trabalhar em Sergipe, porém teme não encontrar boas condições para exercer a profissão. “A estrutura em alguns locais só permite fazer o básico”, afirma.
“A estrutura precária dos serviços de saúde também coloca o médico em risco. A medicina não depende só do médico, é preciso ter equipamentos, equipe”, acrescenta ele.
EXPANSÃO DE CURSOS E VAGAS
O aumento de vagas e cursos de medicina no país foi intensificado na última década.
O número de escolas de medicina mais do que dobrou desde 2010, passando de 181 para 376, em 2020, segundo dados do Censo do Ensino Superior.
Nesse período, o número de novos médicos formados também saltou de 12.705 para 24.046.
Com isso, a densidade de médicos no país aumentou, passando de 1,91 médico por mil habitantes para 2,74 médicos por mil habitantes, em junho de 2022.
Mas a proporção dos profissionais no Norte e Nordeste continua ainda abaixo da média do país.
A baixa densidade de médicos nessas regiões é o argumento usado por grupos educacionais que brigam na Justiça para driblar a moratória de 2018. Nas ações, eles defendem que as restrições impostas pela lei do Mais Médicos impedem a iniciativa privada.
“A oposição das entidades médicas à abertura de novos cursos é corporativista, defende os profissionais que já estão no mercado, tentando diminuir a concorrência entre médicos”, diz Paulo Chanan, presidente da Abrafi (Associação Brasileira de Mantenedoras de Faculdades).
A entidade, que representa principalmente instituições de ensino de menor porte, diz que a busca de liminares foi o único caminho para defender a “livre concorrência”.
A disputa pela concorrência levou a Anup (Associação de Universidades Particulares), que reúne grandes grupos educacionais, a entrar com ação no STF para impedir a análise dessas liminares.
Há quase 180 pedidos de liminares tramitando nos tribunais federais do país, que somam a permissão para a abertura de até 20 mil vagas de medicina.
“Estão destroçando uma política pública através de liminares”, diz Elizabeth Guedes, presidente da Anup.
Segundo levantamento da associação, as ações explodiram em 2021.
“Em 2019, foram quatro pedidos. No ano seguinte, 36. Em 2021, chegou a 96 e só neste ano já são 40. Como cada juiz e tribunal tem um entendimento, a lei do Mais Médicos está sob risco”, diz Guedes.
FACULDADES JÁ CONSEGUIRAM AUTORIZAÇÃO
As liminares favoráveis garantem às faculdades que o MEC (Ministério da Educação) siga o protocolo de análise para a abertura dos cursos. Assim, técnicos da pasta avaliam o projeto político pedagógico, a estrutura e o corpo docente disponibilizado pela instituição.
Após obter a liminar, três faculdades conseguiram autorização do MEC para abrir novos cursos. Foram abertas 403 vagas dessa forma na UniFTC, em Feira de Santana (BA), na Faculdade de Educação de Jaru (RO) e no Centro Universitário Dom Bosco, em São Luís (MA).
Nas duas últimas, há alunos matriculados para a primeira turma dos cursos.
Em nota, o Centro Universitário Dom Bosco disse que a abertura do curso cumpriu todas as fases processuais regulares de avaliação do MEC e que obteve o conceito máximo para a liberação.
As outras duas instituições não responderam à Folha. Procurado, o MEC também não respondeu.